sexta-feira, 28 de maio de 2021

28MAIO2021 *** O legado de Descartes: bem mais que as coordenadas cartesianas


 

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É a última blogada do 14º mês pandêmico. Cada vez mais, se robustece em nosso imaginário que o bissexto 2020 inexistiu. Consegui, depois de 84 dias de ter tomado a primeira dose, receber a segunda dose da vacina. Vivo desde terça-feira uma dupla sensação.

Pertenço a uma privilegiada elite de 10% da população brasileira bi-vacinada. E os outros por que não têm acesso a esta benesse? A maioria destes, como eu, pagam impostos, não fraudam a constituição... Como eu usam máscara e respeitam o isolamento social... por que não são vacinado?  Por que são penalizados? Só porque o motoqueiro do Planalto não crê em vacinas? Afinal, já morreram mais de meio milhão de brasileiros! E todos nós morreremos! ...

Nesta semana de agenda mirabolante, no esteirar das aulas das tardes de quartas-feiras com o Licurgo (in memoriam) e a Sílvia na UFPA, nos envolvemos muito intensamente com Descartes. A blogada de hoje se tece com uma resenha que publiquei em Educação Unisinos Volume 11, número 2, maio/agosto 2007, p. 138-140, quando, há época, eu era professor de uma das mais importante universidades da América Latina, a jesuítica Unisinos.

O legado de Descartes: bem mais que as coordenadas cartesianas

ACZEL, Amir D. O caderno secreto de Descartes: Um mistério que

envolve filosofia, matemática, história e ciências ocultas. [Original estadunidense: Descartes’ Secret Notebook – A True Tale of Mathematics, Mysticism, and Quest to Understand the Universe]; tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, 230 p. ISBN 978-85-7110-973-5

Muito provavelmente, quando referimos o nome de René Descartes (1596-1650), no imaginário da maioria dos leitores de Educação UNISINOS aflore sua célebre frase: “Penso, logo existo!”. É razoável essa emergência, pois podemos considerar que Descartes, com esta máxima, tenha “inaugurado” uma nova relação entre corpo e mente, marcando a teorização [e não apenas a experimentação, e quase fazemos uma oposição a seu coetâneo Francis Bacon (1561-1626) a quem creditamos a proposta de um Método Científico] como uma possibilidade de construirmos conhecimento. Mesmo que usemos Descartes diariamente, quando queremos localizar espacialmente um ponto, ou mesmo um móvel, no espaço, muitas vezes, não nos damos conta de estarmos usando um dos mais significativos e úteis resultados de suas várias teorizações e descobertas: as coordenadas cartesianas, ainda de muito significado na atualidade.

Amir D. Aczel, um estadunidense, professor universitário de Matemática e Estatística, conta que muito recentemente estava perdido em uma nevasca no Canadá e foi salvo pelo rastreamento de seu carro por GPS*. Deu-se em conta, então, que fora algo baseado nas coordenadas cartesianas que garantiu que pudesse ser levado ao conforto e à segurança de um hotel. Desejoso, a partir desse evento, de saber mais acerca do inventor que lhe proporcionara ter a vida salva, passa a investigar sua história. Vai viver em Paris, em um edifício do século 17, próximo à igreja de Saint-Germain-des-Prés – aí se diz repousarem os restos mortais de René Descartes –, nas imediações do local em que, há 400 anos, vivera em diferentes oportunidades o genial matemático. Aczel fez então descobertas surpreendentes que nos conta em O caderno secreto de Descartes, um primoroso lançamento recente no Brasil da Jorge Zahar.

Conhecer a vida daqueles que são “nossas bibliografias” é algo que sempre me entusiasma. Como professor de História da Ciência e de Educação nas Ciências, frequentemente, Descartes está em minhas falas e, é natural, no meu cotidiano, por exemplo, toda vez que preciso me localizar espacialmente. Foi, para mim, das mais enriquecedoras e sumarentas leituras que fiz sobre a vida e obra do filósofo e matemático da aurora da Revolução Científica.

Aczel nos oferece uma sumarenta biografia do francês que perambulou por quase uma dezena de países da Europa. Sabemos sobre seu nascimento em berço protestante e próspero, mas também de sua adesão à fé católica romana devido aos ensinamentos recebidos de sua devota governanta católica. Conhecemos sobre seus significativos anos de estudos no magnífico colégio La Fleche dos jesuítas e do seu ser soldado voluntário de Nassau na Holanda. Recebemos detalhes de seu vagar, por mais de nove anos, por muitos países da Europa em busca de voluntariado em exércitos envolvidos em guerras religiosas, quando sempre achava tempo para “entreter-se com seus pensamentos em seu ‘forno’”, como chamava seu quarto superaquecido. Nesse peregrinar, sempre com seu fiel camareiro, Descartes está resolvendo problemas como aqueles dos geômetras gregos, insolúveis há dois séculos, como duplicar o volume do cúbico templo de Apolo em Delfos. Foi nesse perambular que teve contato com a filosofia rosa-cruz, havendo dúvidas se chegou a aderir à mesma, mas que serviu duramente para discriminá-lo posteriormente.

Talvez coubesse uma pergunta: como se sustentava o filósofo nessas viagens sempre acompanhado de criadagem? Seu pai era proprietário de terras. De tempos em tempos, ele voltava a Touraine, sua região natal, para vender partes de seu valioso quinhão. Sabia fazer bons investimentos e assim se mantinha.

Acompanhamos também a sua decisão de se estabelecer na Holanda, aonde parece teria ido em busca de liberdades religiosas que temia não encontrar entre os católicos da França, e termina alvo da intolerância dos protestantes holandeses, sendo condenado por ateísmo e por discutíveis ligações com a Ordem Rosa-Cruz.

Mas é na Holanda, onde viveu por 20 anos, em dezenas de locais, que o cartesianismo passa ser ensinado nas universidades com a publicação do “Discurso sobre o Método”. Descartes, com a filosofia matemática, tenta fazer o casamento da geometria com a álgebra; com isso, ganha adeptos fervorosos e inimigos ferrenhos. As disputas que houve em torno do cartesianismo na Universidade de Utrech envolveram não só o julgamento da filosofia como questionamentos severos ao filósofo, pelo seu racionalismo, que poderia ser visto como um questionamento à teologia e uma flagrante desconsideração à escolástica, que ainda se faz sustentáculo na nascente universidade europeia. Suas continuadas tentativas de evidenciar com a matemática a existência de Deus valem-lhe a acusação, então quase hedionda, de ateu. Pasmem! Isso na liberal Holanda.

É também do período em que perambulou pelos Países Baixos que se tem referência de dois amores, ambos sempre mantidos quase como secretos, talvez por razões de mesma natureza, mesmo que opostas. O primeiro, com Hélène, que por ser uma empregada doméstica não estava no nível de ser esposa de um rico e reputado filósofo. Desta união nasceu Francine (a pequena França, em homenagem à pátria do pai), que foi batizada no protestantismo, religião da mãe. Nos registros batismais de Francine aparece como se Hélène e René fossem casados. Francine morreu em torno dos 5 anos de escarlatina, fazendo o pai mergulhar em profunda tristeza. O romance não prosperou, pois sempre foi escondido e considerado impróprio socialmente. Uma outra douradora paixão — talvez não concretizada pelo fato de o filósofo não ser da nobreza — foi com a Princesa Elizabeth, filha do deposto rei da Baviera. A princesa foi das mais apaixonadas discípulas do cartesianismo; visitas e cartas, sempre censuradas por familiares da moça, sucederam-se por bom tempo, mas não se sabe se houve encontros mais íntimos entre os dois enamorados.

Uma figura que tem destaque no enredo é o matemático, teórico musical, padre, teólogo e filósofo francês Marin Mersenne (1588-1648), um amigo muito próximo de Descartes. Ficou conhecido pelo seu estudo dos chamados números primos de Mersenne. O asteróide 8191 Mersenne foi batizado em sua honra. Mersenne, ainda que sacerdote católico, era também muito ligado a Galileu Galilei (1564-1642), mesmo enquanto a Igreja tinha as maiores objeções ao cientista italiano condenado pelo Santo Ofício. É em Mersenne que Descartes encontra apoio a suas dúvidas teológicas e no seu desejo de permanecer ligado ao catolicismo e, mais especialmente, como fugir da ira da Igreja por estar convencido do copernicanismo, como seu protetor e orientador Mersenne.

É importante destacar o quanto as notícias do julgamento e condenação de Galileu abalaram a Descartes, especialmente na produção de sua obra O mundo, que renuncia publicar, ameaçando queimar um trabalho de quatro anos. Esta obra só se tornará conhecida alguns anos depois da morte do autor, quando então é publicada.

Em meio aos dissabores amealhados na Holanda, Descartes recebe continuados convites para ir à corte da jovem rainha Cristina da Suécia, que se tornara rainha aos 6 anos, é coroada como soberana do país aos 18 anos e transforma Estocolmo na “Atenas do Norte”, tal o número de sábios de diferentes países que reuniu em sua corte. Como estudiosa do cartesianismo, quis ter o seu inspirador como professor particular na corte. Após muitas resistências, Descartes aceita o convite e transfere-se, já com frágil saúde, para a frígida Estocolmo. A rainha quer suas aulas às 5 h da manhã. O clima frio do inverno mais severo que se tinha registro faz Descartes doente. Em 11 de fevereiro de 1650, menos de cinco meses depois de ter chegado à Suécia, o grande filósofo morre. Há suspeita de que tenha sido envenenado por algum membro da corte protestante, invejoso da aproximação de preceptor católico junto à Rainha Cristina, então protestante. Esta, um tempo depois da morte de seu ídolo, renuncia ao trono, torna-se católica e não nega que faz isso influenciada por seu preceptor, cujo falecimento lhe trouxera tristezas e dissabores políticos.

É nesta narrativa, trazida aqui resumidamente, tecida saborosamente, que o autor nos envolve com uma trama muito bem posta. Esta se inicia 26 anos após a morte de Descartes, com chegada a Paris de Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), o matemático que divide com Isaac Newton (1642-1727) o mérito de ter criado o cálculo diferencial integral. Leibniz procura por um caderno secreto de Descartes, que teria sido remetido da Suécia, quando seu autor lá morrera aos 54 anos. Em rápidos momentos em que tem contato com o Diário, é permitido a Leibniz copiar algumas páginas. Qual o segredo que continha o caderno de Descartes? O que Leibniz decifrou? A ratificação de Descartes das idéias copernicanas era motivo de ocultação de suas descobertas? Respondo apenas a última das questões: sim. Não podemos esquecer que o século 17 foi inaugurado com a levada de Giordano Bruno (1548-1600) à fogueira e que Galileu, condenado ao silêncio sem poder dar aulas e publicar, morreu um pouco antes de Descartes. Logo, havia razões para Descartes, que não queria perder a comunhão com a Igreja católica, manter segredos e estes parecem estar no famoso caderno secreto. Assim, mais do que sabermos como Descartes propõe uma solução geométrica ao modelo de Nicolau Copérnico (1473-1543), O caderno secreto de Descartes nos traz detalhes saborosos da vida e da obra de um dos maiores gênios da Ciência ocidental. Por tal motivo e também para conhecermos mais acerca de um dos balizadores da Ciência moderna, vale ler o texto aqui resenhado.

·               O Sistema de Posicionamento Global, vulgarmente conhecido por GPS (do acrônimo do inglês Global Positioning System), é um sistema de posicionamento por satélite, por vezes incorretamente designado de sistema de navegação, utilizado para determinação da posição de um receptor na superfície da Terra ou em órbita.

 

 

sexta-feira, 21 de maio de 2021

21MAIO2021 *** PRODUÇÃO DE TEXTO ACADÊMICO


 

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Nesta sexta-feira, aconteceu o terceiro encontro de 2 horas da disciplina PRODUÇÃO DE TEXTO ACADÊMICO: A arte de escrever ciência com arte. Compartilho a mesma com Daniel Soares IFG — de quem sou supervisor de pós-doutoramento na UNIFESSPA —. Estamos professores e mestrandos vivendo uma experiiencia quase surreal. Mesmo que o Daniel, enquanto doutor em Letras, já tenha vivido experiencias similareas e eu tenha ministrado oficinas de escrita na URI de Frederico Westphalen e no CUM IPA. Nesta edução, pela primeira vez, para ambos, todos 15 encontros são em atividades remotas.

Programáramos esta atividade para começar na primeira semana de março de 2020, mas a pandemia...

Não é propósito, aqui e agora, trazer um narrar da singular experiência vividas nas tardes de sextas-feiras. Desta se produzirá algo mais substancioso que um blogar. Hoje, trago a minha produção para o encontro desta tarde. Nas duas primeiras aulas, todos os participante produzimos -- estimulados por dois gatilhos, por semeaduras de palavras e por texto de Clarice Lispector – um texto em cada encontro.

Os gatilhos dos encontros foram: Uma noite dessa... e Eu não tinha este rosto de hoje... A partir dos dois textos antes produzidos, para o encontro de hoje fomos estimulados a apresentar um terceiro texto. O meu está a seguir:

Uma Croniqueta

Prelúdio Esta é uma Croniqueta afogadilha, em quatro estações, musicadas por Vivaldi. Primeira estação: um verão, encantado pela cor fúcsia. Segunda estação: outono marcado pela multicolorida queda de folhas. Terceira estação: um inverno impudico despe árvores. Quarta estação: uma primavera iluminada por uma miríade de flores. Estas quatro estações se desenrolam no meu jardim-horta, no 7º andar de prédio quase no centro de Porto Alegre, no bissexto 2020. Só não sou autossuficiente em couve e alface pois sofro uma concorrência desleal de famélicas lesmas. Eu nem podia acreditar nessa espécie de agressão.

Primeira estação: no verão, me encanta uma super-safra de pimentas maravilhosas pela cor fúcsia. A parreira — onde duas videiras, antes exclusivas ocupantes do pedaço (=espaço) agora se envolvem em disputas com uma pimenteira, acolitadas por baraços de batata cará e de alamanda. Este é também local preferido por pássaros vorazes.

Segunda estação: outono marcado pela multicolorida queda de folhas. Os de línguas inglesa têm uma palavra conveniente para o outono: falls. Uma generosa amoreira, de mais de quatro metros, é ícone dentre as caducifólias. Um pundonoroso araçá não se deixa despir.

Terceira Estação: o inverno é voyeurístico, Não consegue seduzir a jabuticabeira, a pitangueira, o butiazeiro, muito menos a tríade impoluta de palmeiras. São destemidas perenifólias. 

Quarta estação: uma primavera iluminada apresenta um séquito de miríade de flores. Estas elegeram floradas de orquídeas como a prima-dona do florífero festival. (Cheguei à 25ª linha regimental e assim deixo de nominar as damas d’honor da festa à deusa Ceres).

sexta-feira, 14 de maio de 2021

14MAIO2021 *** A Wikipédia é referenciável?

 

 

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Mais uma vez a abertura deste blogue se tinta de luto. A tristeza desta edição é pelo falecimento, nesta quarta-feira, do Professor Ubiratan D’Ambrosio (1932-2021), um dos nomes de maior relevância na Educação mundial. Recebi a notícia no cenário mais apropriado. Eu ‘estava’ em Belém, na UFPA, dando aula no câmpus do Guamá. À noticia, evoquei algo talvez de quase meio século. Eu fazia, então, no mesmo local, uma exposição de uma licenciatura plena em Ciências, que me envolvia na UFRGS, com um grupo multidisciplinar. Quando finalizeu a exposição, o Ubiratan, então já figura de renome internacional, resumiu sua avaliação: “Este é o curso no qual eu gostaria de ser aluno!” Nosso trabalho não poderia ter recebido maior aval.

Recordo de quando se fez uma muito envolvente entrevista para a revista Epistéme que editávamos com a Ana Carolina Regner, que perdemos, há não muito, tão prematura.

A admiração profissional se fez amizade. Recordo, nesta dimensão quando fui com ele, Maria José e Gelsa passar um fim-de-semana no Vale dos Vinhedos, na Serra Gaúcha, privando de um sumarento estarmos juntos. Então, no retornar, foi muito bom atender o pedido para passarmos no Santuário de Caravágio.

Tenho razões sobejas para chorar já mais de uma dezena de colegas da academia, que estes tempos pandêmicos subtraem do convívio familiar e profissional. Viver a vacuidade de tantos colegas é doído.

Permito-me — sem deslustrar a elegia aos pranteados colegas ceifados pelo gadanho inexorável da Morte, nestes tempos pandêmico — aditar, a pedido, resposta a questão que parece relevante. “Professor, vez ou outra, em trabalhos acadêmicos, sou admoestado — até criticado — por trazer a Wikipédia com referência em meus textos! Isto procede?” (Ramiro, Manaus).

Sinto, não raro, também, uma desconfiança ou até um desconforto de colegas por referir a Wikipédia como fonte de alguma informação. Mesmo que a Wikipédia já tenha 20 anos ela sofre os mesmos preconceitos (uma enciclopédia onde qualquer um pode escrever o que quiser!) de 2001, quando iniciou. Todos sabem que nunca foi assim. Há que estar alicerçado — para buscar uma resposta a questão, em pelo menos duas informações basilares:

 1) a Wikipédia (até por não ter anúncios e por ser de acesso livre universal) é o melhor exemplo de uma ampla e irrestrita disseminação do conhecimento. Talvez, possa afirmar: a Wikipédia é o melhor exemplo da democratização do conhecimento. Aqueles que usaram enciclopédias em suporte papel podem amealhar pelo menos três nítidas vantagens da Wikipédia, quando comparadas as de suporte papel: i) o custo muito elevado das enciclopédias; ii) a rápida desatualização e lenta atualização; iii) a dificuldade de manuseio para acessar o conhecimento desejado.

 2) não é fácil publicar um verbete na Wikipédia; ainda mais difícil é alterar, de maneira estável, algo em um verbete publicado por outros. Os wikipedistas, quais bem treinados cães de guarda, são altamente capazes na vigilância do que é publicado novo ou reformado do já publicado.

Considero que minha ligeira resposta ao meu atencioso colega manauara pode ser um excelente indez, ou para trazer uma metáfora mais ao agrado da academia, gérmen de cristalização, para um texto mais denso, que poderia ter como ponto de partida l’Encyclopédie, de Diderot & D’Alambert, no Século das luzes. Está aí um bom assunto para futuros escrevinhares!

sexta-feira, 7 de maio de 2021

07MAIO2021 *** Muito prazer, Sr. Palomar


 

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Uma das marcas desta funérea primeira semana de maio foi a falta de vacina em quase todo o Brasil. Vacina é novo nome da esperança. Houve, todavia, momentos frutuosos.

Eu tive um design de como serão, nos próximos meses, minhas semanas plenas. Tardes de quartas-feiras: três horas de aula com o Licurgo — In memoriam —e a Sílvia na UFPA; manhãs de quintas-feiras: três horas de aulas com Manuella e com a Márcia no IFES; tardes de sextas-feiras duas horas de aulas com o Daniel, na UNIFESSPA. Adite-se ainda reuniões individuais e/ou grupais com 10 orientandos.

E, ...se não houvesse pandemia, como seria este design? Eu não sou exceção! E, depois se diz que os professores já estão mais de um ano em férias!

Há, ainda, que sobrar tempo para estudar, preparar aulas (pois meus compartilhadores sãos de escol) e para lazer. Este para mim se traduz em escrevinhares e em leituras.

Um dos livros mais interessante [este adjetivo é trazido em uma homenagem a meu amigo madrileno Emmanuel Lizcano (UAM), que vez ou outra me admoestava: vocês brasileiros, quando não sabem como qualificar algo dizem: é interessante!] que leio e releio nos últimos dias, quando escrevo um texto acerca do uso de modelos para ler a Ciência é Palomar, o último livro de Ítalo Calvino (São Paulo: Companhia das Letras, 1994, 120 p; ISBN: 978-85-716-4409-0).  

Italo Calvino (Santiago de las Vegas, 15/10/1923 — Siena, 19/09/1985) foi um dos mais importantes escritores italianos do século 20. Nascido em Cuba, seus pais eram cientistas italianos que passavam uma curta temporada no país para depois retornar à Itália pouco tempo após o seu nascimento. Sua literatura é considerada sincera, delicada e extremamente ágil.

 O Sr. Palomar é o protagonista dos 27 textos fascinantes amealhados em Palomar. São contos breves (cerca de duas ou três páginas) e sábios. Palomar é o nome de um famoso observatório astronômico que durante muito tempo ostentou o título de maior telescópio do mundo. Por intencional ironia, é também o nome do protagonista destes textos curtos de Ítalo Calvino. Este senhor Palomar é todo olhos, mas funciona quase sempre como se fosse um telescópio ao contrário, voltado não para a amplidão do espaço, mas para as coisas próximas do cotidiano. É como se ele nos dissesse que as grandes questões do mundo e da existência também estão presentes em cada objeto que observamos, em cada cena que presenciamos, e que tudo é digno de ser interrogado e pensado. Palomar foi o último livro publicado em vida por Ítalo Calvino.

Em Palomar, fazendo uma sábia mistura de descrição, narração e reflexão, Calvino revela a mesma inquietude de suas outras obras, sem esquecer aquela pitada de humor refinado que contribui para a leveza de seus textos. Em meio a suas reflexões filosóficas, por exemplo, o senhor Palomar preocupa-se também com a angustiante questão de como se comportar na praia diante de um par de seios nus.

A citação de alguns títulos dos capítulos, oferecerá ao meu leitor (que ainda não leu livro) a ratificação de minha apresentação do Sr. Palomar. Ei-los: A leitura de uma onda; O seio nu; os amores das tartarugas; O assovio do melro; A lua do entardecer; A contemplação das estrelas; A barriga do camaleão; O museu dos queijos; O gorila albino; A pantufa desemparelhada; Do morder a língua; Como aprender estar morto.

Para corroborar minha afirmação faço o ofertório de excertos de O modelo dos modelos:

Houve na vida do senhor Palomar uma época em que sua regra era esta: primeiro, construir um modelo na mente, o mais perfeito, lógico, geométrico possível; segundo, verificar se tal modelo se adapta aos casos práticos observáveis na experiência; terceiro, proceder às correções necessárias para que modelo e realidade coincidam [...] A construção de um modelo era, portanto, para ele um milagre de equilíbrio entre os princípios (deixados à sombra) e a experiência (inapreensível), mas o resultado devia possuir uma consistência muito mais sólida que uns e outra. Num modelo bem construído, na verdade, cada detalhe deve estar condicionado aos demais, para que tudo se mantenha com absoluta coerência, como num mecanismo em que, parando uma engrenagem, todo o conjunto para. O modelo é por definição aquele em que não há nada a modificar, aquele que funciona com perfeição; ao passo que a realidade, vemos bem que ela não funciona e que se esfrangalha por todos os lados; portanto, resta apenas obrigá-la a adquirir a forma do modelo, por bem ou por mal. [...] Já que se trata de reprovar os danos da sociedade e os abusos de quem abusa, ele não hesita (salvo enquanto teme que, por falar demais, também as coisas mais corretas possam soar repetitivas, óbvias, exauridas). Acha mais difícil pronunciar-se sobre os remédios, primeiro porque gostaria de certificar-se de que não provocariam danos e abusos maiores e que, se sabiamente predispostos por reformadores iluminados, poderiam pois ser postos em prática sem dano pelos seus sucessores: talvez ineptos, talvez prevaricadores, talvez ineptos e prevaricadores a um só tempo. Só lhe falta expor esses belos pensamentos de forma sistemática, mas um escrúpulo o retém: e se daí decorresse um modelo? Assim prefere manter suas convicções em estado fluido, verificá-las caso a caso e fazer delas a regra implícita do próprio comportamento cotidiano, no fazer ou no não fazer, no escolher ou no excluir, no falar ou no calar-se. (CALVINO, 1994).

 É trivial imaginar, enquanto um professor de Ciências, sempre envolvido com o uso de modelos — que agora elabora mais um texto acerca do assunto, foi envolvido no conviver com o Sr. Palomar com seus modelos e muito outros temas sumarentos.

E não foi sem razão que acima transcrevi excertos de um dos significativos textos que Ítalo Calvino amealhou no último livro que escreveu: Palomar. Leiamos, para lançar iscas pare prelibar texto ainda em gestação, o que o Sr. Palomar diz sobre modelo. Concordamos com a primeira exigência: construir um modelo na mente, o mais perfeito, lógico, geométrico possível; aderimos a segunda colocação: verificar se tal modelo se adapta aos casos práticos observáveis na experiência; e, quanto, a terceira etapa: proceder às correções necessárias para que modelo e realidade coincidam. Parece que há que discordar! Por quê? O modelo nunca se igualará a realidade. Pois, se tal acontecesse, não existiria mais modelo só existiria a realidade.

 Recordo quando eu era professor Instituto de Química da UFRGS, lecionava a cada semestre para cerca de duas a três turmas de Química Geral1 (QUI 101) dos cursos de Química, Farmácia e Engenharia química. Era a primeira disciplina de Química na formação de graduação desses três cursos. Para os alunos tudo era novidade. O cenário era algo conquistado por méritos: estar ingressando em uma universidade pública federal, em cursos de ingresso muito disputados. Eu usualmente os recebia com uma pergunta: quem poderia me dar um exemplo de um gás ideal? As respostas eram as mais variadas Hélio, Hidrogênio, Gás Carbônico, Neônio, Metano, Propano etc.

Eu não recordo nenhuma situação que alguém dissesse a resposta que eu mais esperava: gás ideal não existe, ou melhor ainda, gás ideal não existe porque tal é uma ficção.  E aí começava, de maneira usual, uma excelente discussão acerca do que é um modelo e como se pode caracterizar o quanto um gás real é mais ou menos aproximado do modelo de gás ideal.

Vale aguardar o capítulo de um livro em gestação, Por ora um recado (quase) final: se não conseguir fazer modelos, lembre-se que tanto na Torá judaica como no Alcorão ordena que “...dele não farás imagens!”

Postdata: Uma meritíssima homenagem a todas as Mães. Neste tempo de afastamentos, aquelas que estão em outros céus parece que estão até mais perto.