É uma aziaga sexta-feira 13. Escrevo em Vancouver no Canada. Há
uma semana vivo uma realidade inédita para mim.
Quando se está a primeira vez em um país, como turista
usualmente, se busca ratificar ou retificar nosso Imaginário acerca do país.
Este imaginário foi construído ao longo de nossa história: os
livros que lemos, os filmes que assistimos, os noticiosos e, talvez, algumas
aulas de geografia decoradas.
Chegados ao país visitado o nosso imaginário vai se
transformando em realidades pelo que observamos, pelo que vivemos e assim por
diante... a ratificação ou a retificação depende de quanto trouxemos em nosso
imaginário.
Parece haver alguma
diferença significativa quando se trata de um país muito desenvolvido ou quando
estamos num país de menor qualidade de vida.
Há uma semana cheguei pela primeira vez ao Canadá; mais
precisamente a Vancouver, única cidade canadense que visitei. Parece que trazia
uma boa generalização acerca do país; mas acerca da cidade conhecia muito
pouco.
Em uma semana foi relativamente fácil dar por existente aquilo que
esperava encontrar em um dos países mais desenvolvimento do planeta. Isto é desenhar
uma grande metrópole capitalista do século 21.
Maciços formados por altos edifícios, muitos com uma arquitetura
imponente que dá a Vancouver o título de ‘cidade
de vidro’. Vi logo um muito eficiente sistema de trânsito com muitos
carros, ou melhor com muitos carrões, se deslocando de maneira continua por
avenidas margeadas por árvores e muitas flores; essas avenidas, em muitas situações
têm sobrepostas outras rodovias que se interconectam por rotatórias que à
primeira vista parecem ser complexos labirintos.
Estava numa cidade que
tem um dos portos mais movimentados da América e o contato da cidade com o mar
oferece inúmeras atrações turísticas, que não tenho condições de descrever.
Uma imponente capital do Século 21 tem, como Vancouver, muitos
movimentados mercados onde a oferta de produtos ditos ‘orgânicos’ e artesanais
parece querer mostrar quanto o ‘deus mercado’ também é bonzinho. A moderna ‘city’
tem muitos museus, galerias de arte, teatros, inúmeros restaurantes e cafés e
poucas igrejas. Tem uma biblioteca pública com um acervo invejável onde se
incluem obras raras em prédio belíssimo (foto). Tem um lindo jardim botânico e
um muito didático aquário inserto em parque de mais de 400 hectares.
Há edifícios sólidos de bancos. Há universidades com posição de
destaque no ranking mundial. Estive em duas famosas com campus imponentes: UBC –
University of British Columbia e SFU Simon Frase University. Na UBC dou
destaque ao Museu de Antropologia MOA.
Vancouver é realmente a orgulhosa capital da província da
British Columbia que nas placas dos automóveis exibe o dístico ‘Beautiful
British Columbia. Tem também muitos monumentos aos grandes vencedores.
E os vencidos?
Há um grupo significativo
de moradores de ruas, São andrajosos. Mas parece receberem de instituições beneficentes
‘um café da manhã’.
Na UBC MOA assisti a uma exposição temporária: ARTS OF
RESISTANCE Politics and the Past in Latin
America. Foi então que ‘me caiu a ficha’. Eu não conhecia nada da História
do Canadá.
Há uma história dolorosa e dramática. Na busca de uma narrativa
em português a escolha foi: A tragédia indígena no Canadá de Elaine Tavares do Instituto de
Estudo Latino Americano IELA UFSC de 12 de Agosto de 2015. Este texto enseja
extensas reflexões.
Desde
os anos 90 do século passado que a América Latina viu crescer – em uma nova e
forte onda – a luta dos povos indígenas pelo direito a sua cultura e ao seu
modo de vida. Considerando que a invasão das terras de Abya Yala provocou
morte, destruição e genocídio, esse movimento de ascenso das lutas indígenas é
também um processo de reconstrução da memória. A verdade sobre o
“descobrimento” é a realidade da dor e da negação de centenas de povos, nações
e civilizações que aqui já existiam antes da chegada dos invasores.
Mas,
não é apenas a América Latina que se levanta em luta. Na parte norte da
América, os povos indígenas também fortalecem as batalhas pela verdade,
desvelando as chagas do extermínio de suas gentes.
No
Canadá, por exemplo, existe hoje uma campanha para que toda a população saiba o
que aconteceu com os povos originários depois da chegada dos colonizadores e
também num passado não muito distante, como é o caso das “Escolas
Residenciais”, criadas para o que chamavam de “reeducação” dos indígenas. Na
verdade, um crime contra a vida, um genocídio cultural sem precedentes. Essa é
uma tenebrosa história que está vindo à tona a partir da denúncia dos
sobreviventes, visto que elas existiram até o ano de 1993.
Segundo
informações da Comissão da Verdade e da Reconciliação, desde a invasão do
Canadá sabe-se que as igrejas realizavam uma sistemática ação de destruição da
cultura, através da evangelização, mas a partir do ano de 1840, o estado
oficialmente assume uma parceria ao criar as primeiras escolas para indígenas
na cidade de Ontário. O governo então dava os recursos, e as igrejas
providenciavam a “educação”. Só que o que era para ser um processo de inclusão
dos povos originários à vida do país, acabou sendo um circo de horrores.
Em
1898 já existiam 54 escolas no país dentro do modelo de “Escolas Residenciais”,
o que no Brasil se assemelharia aos internatos. E era para esse tipo de escola
que eram mandadas as crianças indígenas, num atentado sem limites contra suas
crenças e seus costumes. Em 1946 foi registrado o número máximo de escolas: 74.
E, segundo a lei, os pais que se recusassem a mandar os filhos eram punidos
criminalmente. Não havia escapatória. Os indígenas eram obrigados a enviar os
filhos para o inferno.
Mais de 150 mil crianças foram praticamente
sequestradas, separadas de seus pais e internadas nas escolas que eram mantidas
pelas igrejas Anglicana, Católica, Presbiteriana e Metodista. Ali não era
permitido falar o idioma indígena e todos os costumes autóctones eram negados.
“Eles diziam que éramos do diabo”, lembra uma das sobreviventes. O objetivo era
formar “europeus de pele escura”, eliminando o contato com a família e apagando
o passado cultural.
Não
bastasse isso, muitas dessas crianças eram submetidas a violências de toda a
ordem, inclusive sexuais. A comissão que hoje trabalha para trazer á luz todos
esses crimes, cometidos com o apoio do estado canadense, já documentou 3.200
mortes de crianças nessas escolas, decorrentes de maus tratos, abandono e
suicídio. “O governo canadense manteve essa política de genocídio cultural
porque queria se desvincular de suas obrigações legais e financeiras com os
povos indígenas e assim poder controlar suas terras e seus recursos”,
denunciam.
Segundo
o relatório da Comissão, as denúncias de maus-tratos e violências já começaram
a pipocar no final dos anos 40, mas poucos se importaram. Conta-se que havia
diferenças no trato das crianças conforme as diferentes igrejas, mas, ao fim,
todas elas partilhavam da ideia-chave da proposta que era defendida por Egerton
Ryerson, Superintendente de Educação do Canadá no ano de 1847 e que iniciou a
malfadada experiência: “A educação dos índios não deve simplesmente consistir
no treinamento de suas mentes, mas também na eliminação dos hábitos e
sentimentos de seus ancestrais, na aquisição de novas linguagens, artes e
costumes da vida civilizada”.
No
início do século XX, uma nova lei reforçava a ideia das escolas residenciais e
o apagamento da cultura autóctone, e em 1920 encontra-se o registro da fala do
Superintendente Geral da Casa dos Comuns, Duncan Campbell Scott, que mostra bem
qual era a intenção dos nobres governantes: “Nosso objetivo é continuar até que
não exista um só índio no Canadá que não tenha sido absorvido ao corpo político
e que já não exista qualquer problema indígena no Departamento Índio. Esta é a
meta dessa lei”. E assim, por mais de cem anos, as crianças indígenas foram
submetidas à tortura e ao esquecimento de sua origem.
Mas,
homens como Duncan e outros da sua estirpe jamais poderiam entender que um
mundo não se destrói assim, à força. Seria preciso que todos fossem eliminados
fisicamente. O que não aconteceu. Assim, apesar de toda a dor, de todo
apagamento cultural, a vida indígena resistiu e, hoje, os sobreviventes da
tragédia das escolas residenciais abrem a caixa de pandora do mundo
“civilizado, primeiromundista” do incensado Canadá.
São
momentos de muita emoção os vividos pelos sobreviventes nos inúmeros encontros
que realizam para contar de suas experiências. Campanhas midiáticas foram
criadas para que a verdade venha à tona e para que o governo do Canadá
reconheça os crimes do estado.
Depois
de todo o processo desencadeado pela Comissão, o governo já pagou mais de
quatro milhões em compensação pelos danos causados e o primeiro-ministro do
país pediu desculpas oficiais, mas os indígenas não consideram isso suficiente.
Por isso, ainda lutam pela consolidação de uma série de demandas e
recomendações sobre o tema que somam 94.
Entre
as reivindicações os indígenas exigem que as famílias sejam mantidas juntas,
que a cultura originária seja protegida, que falar sua própria língua não seja
proibido e que se crie uma Lei de Línguas Indígenas, que não haja mais castigo
para as crianças indígenas ,que seja garantido o direito de viver sua cultura,
que se crie uma política de educação capaz de garantir ao indígena a sua real
inserção na vida do país, que haja um pedido de desculpas oficial por parte dos
líderes das igrejas e que haja uma lei garantindo a proteção das comunidades
indígenas.
O
mundo precisa saber que até os anos 90 crimes dessa natureza ainda eram
cometidos no Canadá. É uma luta dura e difícil, mas a qual os povos indígenas
do Canadá estão determinados a travar. Pela verdade e pela justiça.
Com
eles, estamos!